segunda-feira, 4 de maio de 2009

A ARTE DE SER CRIANÇA (Edna Souza - Professora)

Enquanto esperava a chuva passar, a velha senhora trazia à lembrança as gostosas brincadeiras que embalaram sua infância tão feliz. Jamais se esqueceu das bruxinhas de pano que tanto a encantavam e com as quais estabelecia uma doce relação de afeto, prenunciando o instinto materno que anos depois se instalaria no seu coração, enchendo sua alma de alegria. Nos momentos em que estava com elas, fazia-lhes comidinha nas panelas de barro, usando como pratos os cacos de porcelanas azul e branca que desenterrava do quintal. Depois de alimentadas, colocava-as para dormir nas caminhas improvisadas com as sucatas que lhe pareciam nobres pela presença de algum detalhe diferente, que podia ser até mesmo um brilho vagabundinho. Enquanto lhes velava o sono, pegava um talo de mamoeiro, colocava-o numa latinha com água e sabão e depois soprava para fazer bolinhas furta-cores que rumavam para o paraíso.
Quando ganhava a rua, reunia-se com as amiguinhas para aproveitar o tempo de ser criança em todas as dimensões. Naquelas ocasiões, os folguedos multiplicavam-se: pulavam corda; jogavam macaca; brincavam de roda e participavam de inocentes joguinhos do tipo “caí no poço” , “berlinda”, “anjo bom e anjo mal”, “passa anel”, “bole-bole”, “escravo de Jó”. Esgotado o repertorio, chegava a vez de dar uma espiada nas travessuras dos garotos, todas variando conforme o gosto do freguês. Havia muitas opções: partida de futebol com bola de meia, borracha ou seringa, pois bola de couro, só se fosse em sonho; ferrito, jogado com um ferrinho que fazia um caminho geométrico; bolinha de gude; gira-roda; roda-pião; caminhada em pernas-de-pau ou nos pés-de-ferro com duas latas de leite cheias de areia; corrida de carros de latas e os vários tipos de pira que admitiam a presença feminina quando os meninos estavam de bom humor.
Em tempos de chuva, ela largava tudo para ir ao quintal da vizinha saborear as suculentas mangas que dançavam apo sabor do vento, prontas para cair nas suas mãozinhas ágeis que as escolhiam cuidadosamente. Realizada a seleção, era só levá-las até a boca e devorá-las até que os caroços murchassem completamente. Além do lanche gratuito, aproveitava o banho vindo do céu que limpava seu corpo, alegrava seu coração e renovava suas energias para realizar novas atividades, inclusive estudar.
Às vezes, debaixo daquela mangueira, deixava-se guiar pela imaginação e ficava sentada traçando planos para o futuro. Então, pegava as manguinhas-bebês e transformava-as nos boizinhos que povoavam sua verdejante fazenda. Que doce saudade sentia, daquelas tardes fresquinhas que tanto bem lhe faziam!
Mergulhada em suas lembranças, nem percebeu que a chuva já tinha ido embora. Por isso, tomou um leve susto quando a netinha querida tocou-lhe carinhosamente o braço para convidá-la a ir para casa, pois há muito já tinham lanchado. Voltou ao presente e fez uma rápida análise sobre a evolução do tempo: infelizmente, as crianças modernas não brincam mais com liberdade, até porque não existem mais ruas, a violência não permite, os brinquedos artesanais tomaram chá de sumiço e a simplicidade cedeu lugar ao mundo cibernético. Por tal razão, a garotada prefere ficar à frente das máquinas que falam, que jogam, que iludem e que até ensinam, mas que nunca transmitirão o toque de vida arrematado de charme, emoção e criatividade para dar e vender.

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